Ezequiel, Dona Maria e o desafio do dia seguinte

Buscando força para continuar.

“[…] à tarde morreu minha mulher; na manhã seguinte, fiz segundo me havia mandado”.

O texto de Ezequiel 24.18, no Devocionário Mananciais no Deserto, volume 2, gerou em mim maior curiosidade sobre o fato de Ezequiel ter perdido a mulher e em seguida retomado a vida dele, obedecendo a ordem de Deus. A ordem era inusitada: Não chore em público, faça seu trabalho, não guarde o luto. Era preciso continuar.

É claro que Deus usava (usa) a vida do profeta para anunciar Sua Mensagem para o povo. Deus queria que Ezequiel servisse de exemplo para o povo. A nação também perderia algo importante, precisaria de força e de continuar lutando sem esmorecer.

A mulher de Ezequiel lhe era muito querida, Deus lhe fala: “Eu tirarei o teu prazer”, no entanto, você precisa ser forte!

Eclesiastes 9.4 diz: “Quem está entre os vivos tem esperança, até um cachorro vivo é melhor que um leão morto!”. De fato, esperamos algo bom enquanto há qualquer chance, mesmo numa UTI nos agarramos ao mínimo de porcentagem possível de sobrevivência, mas pode ser que não dê certo. Podemos precisar enterrar alguém, um sonho e o único prazer que tínhamos. Entramos num cortejo de lamentação, dor e sofrimento.

Outras pessoas parecem ter passado por situações semelhantes, quando diziam, por exemplo:

“sou contado entre os que descem à cova; sou como um homem que já não tem forças. Fui colocado junto aos mortos, sou como os cadáveres que jazem no túmulo, dos quais já não te lembras, pois foram tirados de tua mão.” (Sl. 88.4-5).

Ezequiel foi exortado a não expor seu sofrimento. A não andar de luto e a não chorar em público. Hoje vivemos numa época em que as pessoas expõem qualquer sentimento. As redes sociais se tornaram um muro de lamentações. O fato de precisar de uma medicação hospitalar por qualquer motivo vira um palco de apresentações, repleto de comentários, mesmo de pessoas com quem nem se convive, como: “melhoras”, “o que aconteceu?”, “mande notícias”, e etc.

Sofrer em silêncio não dá ibope. O vitimismo atrai atenção, mesmo que virtual e justifica as falhas, inclusive de caráter.

Ezequiel havia recebido uma ordem e, após o sepultamento daquela que era a sua companheira, seu prazer e sua delícia, ele a cumpriu. Nada de ritual, nada de canções fúnebres, nada de roupas pretas.

O povo lhe perguntava: Qual a relação destas coisas conosco? A vida do profeta tem tudo a ver com a vida da nação. É para exemplo, é para testemunho e é para que saibam que o Senhor é Deus! (v.24).

Queremos muito ser exemplo de prosperidade (seja qual for), queremos ser exemplo de “família margarina”, queremos ser exemplos de sanidade mental e física. Não queremos ser exemplo de viuvez, do divórcio, do que possui um filho com transtornos psiquiátricos, com deficiência física ou mental e do que perdeu um filho para o mundo cruel da dependência química. Ninguém quer ser esse exemplo. Ninguém quer ter de passar por isso, principalmente, sem ter o direito de ser digno de dó e piedade. Mas, Ezequiel não questionou. Ele fez o que deveria ser feito. Mesmo que isso lhe doesse muito. É claro que ele sofreu, é certo que enquanto estava sozinho e sem estar à vista do povo ele chorava pela perda de sua querida. Consigo entender com isto que há dores que precisamos suportar sem exposição.

Talvez, a morte da nossa idoneidade moral após uma calúnia, a perda repentina da saúde, a perda da autoestima após a traição do cônjuge, a perda dos sonhos, do emprego e dos amigos- signifique muito! Acaba por se tornar um empecilho para a retomada da manhã seguinte. A vontade de ser enterrado junto ocorre com facilidade, e a nossa vida se transforma em lágrimas!

Ezequiel teve um chamado específico, mas, acredito que nós também temos o nosso. Entender qual é a vontade de Deus para nós faz toda a diferença! Se, ao passarmos por tão grande provação pudermos ser espelho de superação para alguém que passará por dor parecida, certamente valerá a pena!

Força para continuar

Tive poucos amigos na infância, mas aprendi a amar uma senhora que possuía uma doença degenerativa. Cresci a vendo diminuir os movimentos. Mesmo criança eu gostava de ir em sua casa e, geralmente, ia quando eu estava triste, pois, D. Maria me fazia sentir melhor. Eu me via feliz em sua presença, pois nunca a vi reclamar e até hoje me lembro fortemente do seu sorriso.

Ela recebia as pessoas e as consolavam. Contava de sua infância e que havia se casado com apenas 14 anos, com um viúvo bem mais velho que ela. Após o casamento, suas bonecas lhe acompanharam e ela ainda brincava muito. Contava do nascimento dos seus filhos e sempre tinha muito bom senso de humor. Nos fazia rir e, saíamos de lá consoladas e alegres. Eu nunca consegui dizer o quanto ela me fazia bem. Sua voz trêmula, seus gestos descoordenados contrastavam com sua alegria, espontaneidade e leveza. Não fui a única pessoa curada com sua simples presença, foram muitas! Sua vida para mim foi um exemplo a ser seguido, um testemunho de alegria e fidelidade e me fez entender que Jesus é Deus.

Ezequiel já cumpriu o tempo dele aqui. Dona Maria, também. Outras pessoas deixaram suas marcas de amor e superação frente a perdas e sepultamentos. No momento, nós estamos aqui, passaremos como uma folha ao vento, mas temos a oportunidade de agir com dignidade e decência, obedecer a Deus e viver um dia de cada vez.

O ontem já foi. Nele podemos ter tido muitos desventuras, sofrimento e decepções. Hoje é um novo dia, nova manhã. Levantar do pó, sacudir a poeira e tocar a carroça não é para quem quer viver o luto eterno, tampouco para os que desejam ser lembrados como vítimas de grandes tragédias e meras situações. Mas, é para quem quer saber ouvir, entender e cumprir a Palavra de Deus! E, para quem não se importa em ser exemplo e sinal da vida de Deus mesmo meio a perdas e tristezas repentinas.

“o choro pode persistir uma noite, mas de manhã irrompe a alegria” Sl. 30.5.

 

Força para continuar
Foto de Oseias Albuquerque

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